sábado, 16 de maio de 2009

Heliana Contadora de Histórias

 

Heliana Castro Alves é Contadora de Histórias e Terapeuta Ocupacional com aperfeiçoamento em arte-terapia. Ao entrar na faculdade, começou a contar histórias através de uma ONG que trabalhava com crianças em situação de vulnerabilidade social. Desde então, não parou mais, variando seu público e os espaços onde ocorrem as narrativas - livrarias, bibliotecas, escolas, eventos.
No mestrado, trabalhou contos de fadas com crianças vítimas de violência, o que possibilitou unir a arte de contar histórias e encantar os seres humanos, com sua formação como terapeuta ocupacional. Atualmente é docente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e está desvendando os mistérios de Minas Gerais.
Heliana nos convida aqui a recontatarmos com a velha bruxa sábia que habita a alma feminina, presente nas histórias populares, e que nos chama a sonhar...

E, no seguimento, uma linda história de sua autoria para ilustrar na prática toda essa magia...
 
A arte de contar histórias: resgate do universo
feminino e poético na sociedade contemporânea

Gostaria de começar este artigo sem as armaduras da cientificidade e sem a completa arbitrariedade da conversação vã. Falar sobre histórias - e, em especial, sobre a história das mulheres durante os séculos na sacra atividade de tecer fantasias imaginárias no cotidiano dos seres humanos - requer, antes de tudo, uma nova roupagem, um novo cenário, um novo jeito de ver o que sempre foi visto.
Convido os leitores de Absoluta para um novo universo onde reinam sapos voadores, ninfas mágicas, florestas misteriosas, ogros devoradores e magos perversos, e, não obstante, para seu próprio viver cotidiano. Para tanto, peço que cada um simplesmente se imagine na varanda de uma grande casa de campo, ouvindo as cigarras e sentindo o frescor de uma noite de verão; ou ainda sob o pé de uma lareira quente em dias de inverno rigoroso, ou (por que não?) perto de uma fogueira ao som de um violão, observando estrelas no céu. Estes são cenários necessários para se compreender o universo feminino que se construiu junto à doce e sagrada atividade de contar histórias, ao longo dos séculos.
"Era uma vez...": a porta de entrada para o imaginário se escancara e todas as possibilidades de sentir começam a se abrir para uma nova existência. Quantas histórias ouvimos antes de dormir durante nossa infância? Éramos embalados por braços afetivos, geralmente femininos (mesmo em corpos de homens), e adormecíamos nas entrelinhas dos contos que encantavam nossos sonhos. Não sabemos exatamente o que acontece, mas acontece: uma certa magia se instala quando abrimos esta porta para o imaginário. Por quê? Porque através das histórias podemos encontrar elementos metafóricos que nos remetem à nossa essência, à nossa origem, à nossa natureza interior.

A mulher moderna e sua bruxa interior - A alma feminina é retratada nessas histórias em formas de heroínas que atravessam florestas para buscar o fogo de Baba Yaga (*), que sobrevivem à perversidade de madrastas, que fogem de um destino cruel ao lado de um marido assassino de barba azul, que desafiam reis através da inteligência. A partir das histórias, encontramos valores universais que nos alertam contra um mundo que aprisiona a alma da mulher numa armadilha hostil: a sociedade moderna e patriarcal, que insiste em afastar duramente a mulher dos próprios instintos. Clarissa Pinkola Estes nos conta histórias de "mulheres que correm com os lobos": não desistem de sua natureza instintiva sobrevivendo num mundo cheio de artimanhas que tenta domesticar a alma feminina, afastando-a da arte, de si mesma, afastando-a, em suma, da seiva da sua rica vida interior.
Todas as mulheres já passaram por fases em que se sentem vazias, deprimidas, mergulhadas numa vida sem sentido, exercendo um trabalho sem significado, com um marido ou chefe que não as valoriza. Sentem-se como que morrendo, todos os dias: suas vidas se esvaindo num conta-gotas, gota por gota. E pensam que o erro é delas: não são bonitas o suficiente (porque nossa sociedade consumista trata a mulher como um objeto decorativo ao lado dos carros de marca), porque não são inteligentes o suficiente (e deixam que seus chefes ou diretores roubem sua criatividade), ou porque não têm o suficiente (carros, casa, roupas). E assim vai... As histórias falam diretamente a essas mulheres. Ensinam que o importante é SER e não TER. E "ser" na sua essência, florescendo na sua natureza selvagem.
Existe, dentro de cada uma de nós, uma velha bruxa anciã que tudo vê, tudo sente, tudo sabe. Ela nos alerta quando estamos em perigo falando-nos através de nossas fantasias, das nossas intuições, dos nossos sonhos, de nossa arte. Esta velha anciã se comunica conosco numa linguagem metafórica que habita nosso inconsciente mais arcaico e que reside, sobretudo, nos contos populares. Estes sobreviveram durante séculos e oferecem, gratuitamente, sabedoria para atravessar mares de problemas existenciais. Não é à toa que a maior parte dos contos era narrada por mulheres enquanto realizavam trabalhos manuais, como a costura, durante o desenrolar da noite - uma atividade por essência, feminina, tecida sob o luar. Estas mulheres eram velhas sábias e talvez ensinassem suas filhas e netas a sobreviverem diante de um mundo que tentava se sobrepor à alma feminina.
A mulher moderna, ao acumular papéis e responsabilidades, não deve se esquecer da sua natureza arcaica, da sua anciã que a olha por dentro com tristeza ao vê-la sobrecarregar-se e desvalorizar-se. Não deve esquecer de si mesma nos seus afazeres sem sentido, e nem se deixar mortificar o corpo e a alma para seguir os padrões de um mundo patriarcal desejoso de seu aprisionamento. A mulher que emerge na contemporaneidade deve, sim, lutar por uma vida profissional, amorosa e familiar, satisfatória (...). Satisfatória?! Satisfatória, não... Enaltecedora, inspiradora, que a faça simplesmente buscar o céu estrelado, dar risadas soltas à noite, dançar ao luar; que a impele ainda na busca da arte para alimentar sua alma, poética por essência - mesmo que não escreva, pinte ou atue, e mesmo que isso tudo ocorra aos sabores dos ciclos. Deve buscar uma vida que valorize sua vida interior... uma vida que a faça sonhar. Às vezes, tudo o que precisa é ouvir essa velha sábia contar histórias, entre ecos do seu mundo interior. E florescer poesias em cada gesto e olhar. Esta mulher deve se permitir, enfim, ler contos que enriqueçam seus sonhos e que a lembrem dos desafios da sobrevivência, para que ela se torne, antes de tudo, a heroína de sua própria história.
A alma feminina que os contos retratam é a alma do mundo, que gera e acolhe a vida dos homens; é a alma que habita o interior de antigas e enormes montanhas inertes e o barulho incessante das ondas do mar quando chegam à praia. Esta alma precisa das histórias para se refazer todos os dias, no imaginário feminino e na incessante busca da paixão de viver.

(*) Baba Yaga é uma bruxa do folclore russo: come crianças e se desloca pelos ares usando um pilão mágico e um socador no lugar da vassoura; é muito poderosa mas não consegue atravessar água corrente. Em uma das histórias russas, Vassilissa, a bela, tem uma madrasta perversa que manda pegar o fogo da bruxa para que a casa possa ficar iluminada. A heroína passa por uma série de provas e retorna vitoriosa.

Princesa
Para a princesa solitária que habita meu universo feminino

“Era uma vez uma princesa encantada que tinha nos cabelos verdes o brilho orvalhado de todas as florestas do mundo.
Era outra vez essa mesma princesa encantada. Tinha os lábios azuis, como se guardasse os sete oceanos do planeta. Ao acordar, pela manhã, saciava a sede do universo. Seus olhos eram vermelhos como fogo e sua tez de todas as cores imagináveis.
Ela era, porém, a mais solitária das criaturas.
Vagava pelo mundo, nua com seu corpo aéreo, e era invisível, tanto para os seres mais ínfimos, quanto para os seres mais colossais. Porque princesa não tinha tamanho. Era, apenas Era.
Deserta-se sem reino, sem pátria, sem voz.
Seus movimentos, leves como pensamentos.
O ventre feito de terra cheirando chuva.
E asas voláteis de sonhos inacabados.
Caminhava pelas montanhas livre e silenciosamente.
Seu silêncio vigiava a noite e contava segredos para as estrelas piscantes. Mortalmente silenciosa. Olhar vago, amplo de oceanos profundos.
Algumas vezes, princesa adormecia deitando-se sobre as formas das montanhas que a abraçavam como extensas almofadas acolhedoras.
As velhas anciãs acobertavam seu corpo com o sussurro dos ventos uivantes que, entre as árvores, entoavam melodiosas canções de ninar. Engravidava de sonhos.
Outras vezes, porém, sua alma etérea a guiava para dentro do pólen da mais pequena flor, ou para o quebranto de uma fonte de águas termas.
Ela podia se moldar à uma pedra ou às asas de um pássaro, mas sua alma estava sempre livre e silenciosa, habitando um universo insondável, cercado de mistério, sombra e luz.
Era uma vez, e será sempre,
um lugar,
uma princesa,
uma mulher,
uma forma de luz que gere, pari, verte leite e morre todos os dias para depois renascer,
em cada pôr-do-sol,
no silêncio da noite,
procriando humanidades”.

 
Heliana Castro Alves
Contadora de Histórias e Terapeuta Ocupacional com aperfeiçoamento em arte-terapia; mestre em educação especial pelo PPGEE; docente da UFTM.
helianasol@gmail.com
SÃO CARLOS/SP
Fotos
Heliana Castro Alves

publicado originalmente em:
http://www.absoluta-online.com.br/conteudo_yinsights_artigos_contadoradehistorias.html
 

3 comentários:

Marina Fonseca disse...

Boa noite!

Estou encantada com a sutileza dessa contadora de histórias. Isso sim é conseguir tecer os diversos fios aos quais somos apresentados pela (e na) Terapia Ocupacional.

Parabéns, também, pelo blog - mesmo percebendo que ele perpassa questões de turmas específicas. Uma ótima iniciativa!!

Ah... Apresentando-me: Sou estudante de Terapia Ocupacional da UFMG, 8º período. Mais uma vez, meus cumprimentos.
Abs.,

Marina Fonseca

Erika Cristina Diniz disse...

Ola, estou terminando a graduação em To pelo CENTRO UNIVERSITARIO DE ARARAQUARA - UNIARA...
Tive o prazer ter conhecer essa pessoa encantadora que ela é.... Durante um tempo ministrou aulas para a minha turma....a 1ª turma de TO da Uniara....olha que luxo....aii...tinha que ter uma professora assim....deste nivel!!!!!

Sdd dela!

Anônimo disse...

Your blog keeps getting better and better! Your older articles are not as good as newer ones you have a lot more creativity and originality now keep it up!