segunda-feira, 9 de maio de 2011

O lugar da arte na terapia de Nise
Tese mostra importância do trabalho inovador desenvolvido pela psiquiatra

Nise da Silveira repetiu diversas vezes que “ninguém perguntava para ela sobre os doentes mentais, sobre onde eles moravam, como era a vida deles”. Segundo o terapeuta ocupacional José Otávio Pompeu e Silva, a psiquiatra brasileira falava que o mais importante era dar oportunidades melhores para estes doentes. “Ela falava que eles moravam em tristes lugares e que isto precisava ser mudado”, complementa Pompeu e Silva, que dedica seu doutorado, defendido no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, à presença forte da arte na técnica de terapia ocupacional deixada por Nise da Silveira. A ideia da tese é mostrar que, a partir da convergência de vários autores, ela construiu uma teoria complexa a partir da qual amplificou o potencial criador dos doentes mentais que receberam seus cuidados. “A arte é central na vida e na obra de Nise”, ressalta Silva, que foi orientado pela professora Lucia Reily, do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Dr.Gabriel Porto (Cepre) e do Instituto de Artes da Unicamp.

Ao seguir os passos de Nise, tanto na vida pessoal quanto na contribuição literária, a tese coloca no mesmo patamar arte e medicina, pintura e psicanálise. O método de Nise da Silveira, segundo o terapeuta, une vários pensadores e práticas numa construção complexa, como chamam os estudiosos atuais. Complexa no sentido de sua etimologia latina: “aquilo que é tecido em conjunto”. Nise estudou muitas fontes em suas pesquisas e teve o privilégio de conhecer Jung, que, durante um encontro em sua casa na Suíça, convenceu-a a estudar mitologia. Mas ela também teve outros mestres importantes como Freud e o filósofo Spinoza, segundo Pompeu e Silva. “Defendo a tese que Nise da Silveira não se filiou a nenhuma escola de terapia ocupacional, mas desenvolveu seu próprio meio de prática e teoria, com um estudo das mais variadas escolas e pensadores que ela julgou pertinentes para o desenvolvimento de uma terapia ocupacional de excelência”, acrescenta.

Oriunda de uma família alagoana, Nise viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde introduziu atividades expressivas e estudou a expressão plástica de doentes mentais internados em um grande hospital psiquiátrico no subúrbio da cidade. De acordo com Pompeu e Silva, ela estudou a leitura de imagens do inconsciente e, com esta prática, descobriu um novo meio de comunicação com o mundo interno do doente mental. Para ele, um detalhe muito importante na história de Nise é seu aprofundamento no estudo da vida dos clientes que ela cuidou e estudou durante a vida. Uma das atitudes nobres da psiquiatra, na sua opinião, foi trazer os doentes esquecidos do Engenho de Dentro para a literatura, para as exposições de arte e para os olhos do mundo.

A prática de Nise é muito importante, na opinião do terapeuta, no sentido de amenizar o tratamento na área de saúde mental. A vivência de dez anos nesta área o credencia a falar sobre a construção complexa de Nise e abordá-la com seus alunos de terapia ocupacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na sua opinião, apesar da reforma da psiquiatria na primeira década do século 21, os doentes mentais ainda em alguns lugares são tratados com grandes doses de psicotrópicos. “Mesmo com a reforma, técnicas como a de Nise da Silveira, que possibilitam a estas pessoas se expressarem e mostrarem seus sentimentos e subjetividade, ainda são colocadas como secundárias no tratamento oferecido na saúde mental brasileira”, reflete Silva.

Sempre adversa a tratamentos considerados agressivos, Nise revolucionou os métodos de atendimento ao portador de transtornos mentais no Brasil, principalmente no que diz respeito à esquizofrenia, cujos pacientes são muitas vezes de difícil acesso pela linguagem verbal.

O contato com a prática da mestra foi possível, segundo ele, porque ela teve o cuidado de passar sua técnica para muitos seguidores. Na observação de Pompeu e Silva, muitos jovens psicólogos, terapeutas, artistas, monitores de terapêutica ocupacional aprenderam nos grupos de estudo e no Museu de Imagens do Inconsciente a maneira como Nise cuidava dos seus clientes e suas metodologias de estudo.

Segundo o professor, Nise escreveu artigos, revistas e livros. Os mais expressivos foram produzidos depois dos 70 anos e mostram que a criação no envelhecimento é um caminho possível e importante. “Ela preocupou-se em deixar muitas pistas sobre sua metodologia e seu jeito de cuidar dos doentes mentais”, acrescenta.

Ao pesquisar a trajetória da autora, retomando sua biografia até os 40 anos de idade, Silva mostra que a vida e o trabalho se complementavam. O autor da tese explica que a teoria da técnica de uma terapia é criada e recriada constantemente. No caso de Nise, apesar de vários textos publicados, a forma de fazer terapia não foi totalmente codificada e explicada por ela, então, com sua morte, cabe aos seguidores recriar uma forma de terapia que possa ser usada em conjunto por terapeutas, artistas e interessados em propiciar uma melhor qualidade de vida para pessoas que sofrem de dor psíquica.

No Brasil, segundo o pesquisador, há um extenso material que pode ajudar nessa busca. Mesmo não tendo acesso a todo o acervo da psiquiatra, ele descobriu livros e outros documentos em muitos lugares do Brasil, entre eles o Fundo Octavio Brandão, onde encontrou fotos, imagens, cartas que ligavam Nise da Silveira ao partido comunista e a trajetória de Laura Brandão e da família de Otávio Brandão. “Nise foi uma das quatro pessoas presentes no porto do Rio de Janeiro quando a família Brandão foi deportada do Brasil no início da era Vargas”, relembra.

No Fundo Leon Hirszman, Silva descobriu um material de um documentário inacabado e inédito sobre Nise da Silveira. O principal ambiente de pesquisa onde se pode encontrar muitos documentos sobre Nise é o Museu de Imagens do Inconsciente.

Para Nise, a esquizofrenia nada mais era que “estados de ser”, desencadeados por situações extremas. A inclusão, transformação e cura por meio da arte era a base para o tratamento de doenças mentais. A iniciativa de unir humanização e arteterapia foi elogiada pelo mestre Jung. Ingressou no curso de medicina aos 16 anos, num momento em que as profissões não eram tão acessíveis às mulheres, e formou-se aos 21 anos especializada em psiquiatria, já contestando os tratamentos tradicionais.

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Publicação
Tese de doutorado:
“A Arte na Terapia Ocupacional de Nise da Silveira”
Autor: José Otávio Pompeu e Silva
Orientadora: Lucia Reily
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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fonte: Jornal da Unicamp